O Navio fantasma




 



O Navio Fantasma

 

 

Finalmente o mar estava calmo em sua imensidão.

Não gosto de me recordar da noite anterior, pois cheguei até mesmo a pensar que não  sobreviveria.

Foi muita correria. A água começou a invadir meu barco, e de fato, cheguei por um instante a pensar que a bomba d’água não daria conta do recado. Por um momento bati a cabeça na pequena sala de máquinas e acredito que desfaleci, porém o que me anima é que felizmente não sofri nenhum ferimento. Talvez tenha sido vítima de uma pequena contusão cerebral que lembro de ter visto na televisão, patologia essa muito comum em boxeadores, que os levam a nocaute, que também foi meu caso.

Minha sorte foi que quando acordei, a tempestade já estava mais branda, e aos poucos ela foi se extinguindo.

Realmente tenho muito que escrever no meu pequeno diário de bordo. Hoje são vinte e sete dias que estou aqui dentro desse barco. Muitas vezes chego a pensar, que todo homem algum dia, deveria viver esses momentos de solidão, que nos faz encontrar a nossa essência, tão profundamente escondida dentro de nossa alma.

Acho até mesmo hilariante o modo que nosso cérebro funciona. Mesmo navegando na imensidão do oceano, ele nunca para de pensar. Lembro-me de minha infância, de quando gostava de brincar com meus amigos, para ver quem ficava mais tempo sem pensar. Hoje ainda pratico isso, antes de dormir, mas, nunca consegui alcançar o êxito. Quando estou nesse barco, navegando dentro da solidão, consigo até mesmo ficar por um minuto sem ter algum pensamento. É hilariante o que fazemos para enganar o tempo.

Minha jornada teve um início tranqüilo.

Confesso que estava querendo fugir um pouco da agitação urbana. Estava cansado de telefonemas, recados e trânsito congestionado, enfim, os tumultos da cidade grande.  Minha esposa e filha, como sempre criaram resistência contra essa minha aventura no mar. Meu objetivo era navegar até a costa sul da África e voltar, sozinho, sem ninguém para dar palpites ou me incomodar durante minha investida rumo ao desconhecido.

Sempre dizia a elas, que se os grandes navegadores de antigamente conseguiram descobrir novos continentes, sem auxilio da tecnologia, por que eu não conseguiria, utilizando todos meus recursos e instrumentos de alta tecnologia?

Mas mesmo assim elas não se davam por satisfeitas. Queriam que eu desistisse da idéia, e fosse com elas passear em algumas dessas inúmeras praias brasileiras.

Já estava cansado de praias e pacotes turísticos. Queria algo que nenhum pacote turístico pudesse me proporcionar. Queria aventura, um pouco de solidão, sossego e independência. Acredito que minha esposa e minha filha, junto com esses vinte e sete dias que nos separaram, talvez tenham compreendido minha intenção.

O importante é que chego amanhã e revigorado. Pronto para enfrentar qualquer situação até mesmo as críticas de minhas amadas...

Ao menos, de acordo com a mensagem que me enviaram ontem, antes da tempestade, minha filha me disse que haveria muita gente para me recepcionar, incluindo meus colegas de trabalho, meus parentes e é claro, elas! O que me deixou feliz, foi que segundo me informaram, parece que até a imprensa estará aguardando minha chegada. Isso é bom. É uma forma de ensinarmos ao mundo como fugir um pouco dele. Esses jornalistas! Fazem de tudo por uma notícia.

Bom, já terminei aqui na sala de máquinas. Toda a água foi drenada. Agora me resta subir ao convés e me comunicar com minha família para saber como estão os preparativos de minha chegada.

- Meu Deus, de onde vem toda essa neblina?

Pronunciei em voz alta assim que subi as escadas da sala de máquina e avistei o oceano, que também estava envolto pela mesma névoa. Assim que cheguei no convés, parecia que meus instrumentos de navegação haviam parado. Nada funcionava, exceto a velha rosa dos ventos, que eu carregava comigo mais por recordação de meu pai. Este parecia um bom momento para que eu começasse a usá-la, mas assim que olhei para ela, estava me dizendo que meu barco seguia exatamente a rota já friamente calculada. Ao menos estava no caminho certo. Porém pelos meus cálculos, eu deveria ainda navegar por aproximadamente por mais umas doze horas.

Subitamente meus pensamentos foram interrompidos pela sensação de ter ouvido alguém que gritava alguma palavra que meus ouvidos não conseguiam compreender, até que me dirigi à proa de meu barco, e, a cada passo que dava, podia ouvir a voz que a cada instante se tornava mais nítida, até que pude ouvir a seguinte frase:

- Barco a vista!

Minha visão estava um pouco prejudicada pela nevoa que cobria o oceano, até que o inacreditável surge diante de meus olhos.

Não é possível! Tinha diante de meus olhos uma visão praticamente impossível de se ver. Era a bandeira clássica de um navio pirata e quanto mais meu barco se aproximava, tornava-se mais nítido a visão de um barco de madeira, cujo casco parecia ser muito bem cuidado, porém sem sinal de verniz. Aos poucos avistei um senhor, que tinha em sua face uma longa barba branca, que gritava e acenava para chamar minha atenção.

- Ei marujo!Vou aproximar de seu barco e lançar as escadas de corda, para que você suba até aqui! Está tudo bem com você amigo? Está precisando de ajuda?

Eu pensava comigo que aquilo não podia estar acontecendo, ou que na pior das hipóteses, eu tivesse invadido um set de filmagens. Parecia um absurdo, a idéia que eu acabara de ter. Quem iria preparar um set de filmagens no meio do oceano!

Quanto mais eu pensava, menos eu compreendia, até que fui arrematado por uma súbita coragem e respondi em voz alta e clara:

- Está tudo bem senhor. Não se preocupe que vou tirar meu barco de seu caminho.

- Ele não está atrapalhando meu filho! Suba em meu navio para tomarmos uma dose de rum.

Até que não era uma má idéia. Uma dose de rum, após uma atribulada tempestade, e, eu aproveitaria para saciar minhas dúvidas.

Dirigi-me até a escada de cordas que aquele senhor havia jogado. Não me preocupei com meu barco, pois eu o havia ancorado, e percebi que o navio estacionado em minha frente, também estava ancorado.

Ao subir no navio, fui prontamente recebido por aquele senhor, que mui gentilmente me estendeu as mãos me ajudando que eu embarcasse.

- Seja bem vindo meu filho! Apresento-lhe meu navio, Santa Maria D’agnes .

- Muito grato. Meu nome é Nicolas. Qual é a sua graça?

- Pode me chamar de capitão Monte Negro, também chamado de “o justo” pela minha tripulação. Venha comigo até minha cabine, para que juntos possamos desfrutar de um delicioso rum, vindo de minha terra e fabricado artesanalmente!

- Obrigado. Aceito seu convite com muita satisfação. Meu nome é Nicolas.

Então aquele simpático senhor colocou sua mão sobre meus ombros e seguimos caminhando pelo barco.

Minha curiosidade aumentava a cada instante. Aquele navio parecia que não tinha fim, e quanto mais eu andava, mais objetos interessantes, que se assemelhavam a antiguidades, vendidas nessas lojas especializadas surgiam ao meu redor. O que me chamou a atenção foi que em instante algum eu percebi a presença de marujos naquele imenso navio. Talvez eles pudessem estar no andar inferior junto com o restante da tripulação.

Ao chegarmos, deparamos com uma cabine pequena, mas muito bem mobiliada com móveis que pareciam ter sido feitos a mão, o que dava um ar rústico ao pequeno local.

- Puxe uma cadeira e sente-se meu filho.

Imediatamente arrastei uma cadeira que se situava em minha frente, e deixando a etiqueta de lado não me contive. Tinha muito que perguntar.

- Obrigado capitão Montenegro. Mas o que lhe trás para o meio desse oceano? Está perdido?

- Perdido? Eu? Não meu filho. Isso é algo meio impossível de acontecer. Conheço esse oceano como as palmas de minhas mãos. Mas lhe confesso que fico muito feliz por ter aceitado meu convite. Faz muito tempo que não converso com alguém.

- Nossa! Eu que o diga. Saí para uma aventura. Naveguei até a costa sul da áfrica em meu pequeno barco. Minha viajem até este momento já completou vinte e sete dias. Chego amanhã em minha terra. Estou ansioso por demais em reencontrar minha família.

- Isso é bom meu filho. Vejo que é um homem de coragem. São poucas as pessoas que fazem o que fez. A maioria tem medo do mar ou da solidão.

- Tem razão capitão. Realmente estava em busca da solidão, mas com o passar do tempo, ela nos envolve tanto, que novamente sentimos falta do cotidiano, dos amigos e do barulho. Nem acredito que estou falando com alguém desde que saí nessa minha aventura. Praticamente um mês sem conversar com outras pessoas, exceto comigo mesmo, e agora com o senhor.

O Capitão, pegou a garrafa de rum que já estava colocada na mesa, encheu meu copo e me ofereceu dizendo:

- Tome Nicolas, um brinde à solidão!

-  Um brinde capitão!

Nunca havia provado rum tão delicioso. Era perfeito. Tudo o que eu precisava naquele momento, para me dar as forças necessárias para completar minha missão.

- Nicolas, já tem anos que navego, e certo dia eu enfrentei uma tempestade muito semelhante a essa que você enfrentou. Eu e minha tripulação, composta de quinze homens valentes e destemidos. Foi a pior tempestade de minha vida... Eu temia por eles. Raios riscavam o céu, carregado de nuvens que mesmo a noite podiam ser observadas. O ecoar dos trovões amedrontavam qualquer um! Mas meu maior inimigo era o vento, que cada vez mais forte, criava ondas gigantes, maiores que as da costa do Havaí! Eu pensava que o Santa Maria Dagnes, não suportaria, pois imagine você Nicolas, um barco de madeira, enfrentando uma tempestade dessas. Nesse dia, perdi toda minha tripulação.

- Meu Deus! Imagino o que passou capitão.

- Por isso hoje navego sozinho por essa imensidão de oceano.

- É capitão, confesso ao senhor que ontem eu cheguei a pensar que não sobreviveria.

- O mar muitas vezes causa medo às pessoas, Nicolas...

- Capitão, mas de onde vem essa sua paixão pelo mar?

- Nicolas, você irá rir, mas quando eu era apenas uma criança, sempre fui apaixonado pelas aventuras de Simbad! Resolvi ser como ele, sair em busca de aventura, assim como você meu filho, navegar pelos sete mares! Temos isso em comum Nicolas. Corre em nosso sangue. Você me disse que saiu em busca de aventura, e mesmo nessa  imensidão você a encontrou. Até mesmo a solidão é uma aventura, pois é nesses momentos que temos a oportunidade de nos conhecermos. Muitos marujos saem ao mar e não suportam a solidão. Desesperam-se... Outros começam a vomitar, relatando um mal estar. Eu tive um conhecido que dizia ser amigo de um grande e experiente navegador, que falava que o ato de vomitar quando se entra em um navio, é uma inaceitação, e nossa reação é o vômito. Ele dava o exemplo de muitas mulheres que quando estão grávidas, sentem aquela náusea e vômitos, mas no fundo, tem medo de ser mamães! O vômito seria a manifestação da inaceitação.

- É capitão... tudo que fala faz sentido.

- Nicolas, sabe como eu testava a minha tripulação?

- Não capitão, de que forma?

- Eu saia com eles para navegar por uns sete dias. Aquele que apresentasse náuseas era eliminado! Você tem náuseas Nicolas?

- Não capitão. Desse mal eu não sofro.

- Isso o torna também um bom marinheiro Nicolas.

- Obrigado, capitão.

- Também me lembro de um jovem Nicolas, que era destemido assim como você. Aventurava-se pelo mar, e, um dia deixou a família para trás... Porém, ele foi vítima de uma tempestade, pior até mesmo da que enfrentamos...

- E o que houve com ele capitão?

- O oceano o carregou para o fundo.

- A família dele deve ter sofrido muito...

- Sofreu sim Nicolas, por demais... A esposa se suicidou e a filha se prostituiu. O que é triste é que a filha passou a odiar o oceano. Por isso sempre achei que o mar é para os solteiros descompromissados. Não é permitido ter dois amores intensos em nossa vida. Muitas vezes somos obrigados a escolher.

Eu me sentia um pouco entorpecido... Não havia percebido que eu já estava lá pela quinta dose de rum.

- Eu fiz minha escolha capitão Montenegro. Escolhi o oceano!

- Mas e sua esposa e filha, capitão Nicolas?

- Elas sabem se virar muito bem. Confesso que já estou planejando uma outra aventura, talvez navegar até o continente asiático...

- Nicolas, elas sentem sua falta. Sua esposa sente a falta do marido, e sua filha precisa do pai.

- Por que fala assim capitão Montenegro?

- Porque toda mulher precisa de um homem, e todo filho um pai. Tem certeza de que fez sua escolha Nicolas?

- Estou seguro sim, capitão. Minha escolha é sensata. Meu amor é o oceano.

- Nicolas, muitas vezes não podemos voltar atrás de nossas escolhas... Uma decisão depois de ser tomada, não há como ser mudada. É como um soldado que está para ser fuzilado. Assim que a bala penetra o coração do pobre homem, ele morrerá. De nada adianta minutos depois, vir um mensageiro trazendo consigo a carta perdão, relatando que o condenado é inocente, devendo ser libertado. De que adianta se ele já está morto.

- Eu sei disso capitão Montenegro.

- Que assim seja. Respeito sua decisão, Nicolas. Também não quero lhe embriagar, pois sei que está ansioso em chegar a seu destino. Venha comigo que lhe acompanho até seu barco.

- É capitão Montenegro. De fato tenho que ir se quiser chegar no horário.

Me despedi do capitão Montenegro. Enquanto descia a escada de corda, que dava acesso a meu barco, meus pensamentos eram de admiração pela tamanha sabedoria daquele homem que tinha diante de meus olhos. Havia encontrado um velho lobo do mar, porém uma dúvida fustigava meu raciocínio e eu havia esquecido de perguntar sobre o porque que ele era chamado de “o justo”. Talvez um jargão da tripulação...

Ao colocar os pés em meu barco, gritei ao capitão:

- Como posso fazer para contatá-lo capitão?

Ao longe pude ainda ouvir a voz do capitão, menos intensa, mas compreensível.

- Não se preocupe meu filho! Iremos nos encontrar novamente na imensidão deste oceano. Somos filhos do oceano!

Eis que meus olhos perceberam as cordas se soltarem. A neblina havia dissipado, e pude perceber a inscrição que o navio do capitão Montenegro trazia impressa em relevo:

Santa Maria D’agnes – 1853.

Aquela data me causava um certo espanto, mas aos poucos o navio foi se afastando. Até mesmo a neblina havia se dissipado.

Fiquei curioso com a data. Talvez ela fosse apenas uma alusão à alguém nascido naquela época, pois de fato, o capitão Montenegro tinha uma aparência de um homem muito conservador.

Entrei na cabine de meu barco, fui até a rosa dos ventos, e percebi que havia calculado minha rota de forma errada, e para minha surpresa e pelos meus novos cálculos, eu devia estar mais próximo do que imaginara. Talvez já pudesse ver meu ponto de chegada diante de meus olhos... Uma ansiedade percorreu minha alma, junto com o desejo de ver minha esposa e filha.

Liguei os motores a toda força em direção ao porto. Subi até o convés. Tomei o leme em minhas mãos e percebi que já podia avistar meu ponto de chegada que a cada instante tornava-se mais próximo. De longe pude avistar uma multidão de pessoas, e ao me aproximar mais, pude perceber que a maioria vestia-se de preto, que de fato era uma cor inapropriada para minha chegada. Olhei para meu relógio. Faltavam apenas um minuto para o horário de chegada, mas quanto mais me aproximava, nenhuma das pessoas olhavam para meu barco. Apenas estavam cabisbaixas, olhando para o oceano...

Finalmente meus olhos viram minha esposa e filha, que estavam abraçadas e chorando aos soluços, amparadas por alguns amigos meus junto com um padre que parecia confortar minha esposa e filha.

Minha cabeça estava confusa. Não estava entendendo nada. Estava com meu barco parado bem diante deles e ninguém notava minha presença. De súbito, começaram a atirar botões de rosas, junto com coroas de flores, em minha direção, que transpassavam meu barco e caiam nas águas do porto. Então pude avistar uma faixa, que trazia os seguintes dizeres:

“ Nosso adeus ao maior marujo dos oceanos. Parabéns Nicolas, nós te amamos!

   Descanse na paz eterna, com ao amor de sua esposa e filha.”

Todos viraram as costas e se foram.

O medo invadia minha alma. Finalmente tudo fazia sentido. Eu havia feito a minha escolha...

Avistei o horizonte, mudei o rumo de meu barco e segui em direção ao oceano. Olhei para trás mais uma vez. Tudo havia desaparecido...

Desta vez não navegava só. Tinha ao menos a esperança de encontrar novamente o capitão Montenegro, que dividia meu coração com as dúvidas e a solidão, enquanto eu observava o por do sol.

Finalmente havia compreendido o significado de “o justo” no nome do capitão, e, agora de fato, o mar estava calmo em sua imensidão eterna.

 

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