Uma Consuta, Três Moedas
Uma Consulta, Três Moedas
Cheguei ao consultório mais cedo do que o habitual. A secretária, que havia
agendado a consulta, recebeu o pagamento de uma maneira inusitada: três moedas
de ouro entregues por um terceiro, que deixou apenas o nome da paciente anotado
em um pedaço de papel. Em um mundo onde transferências bancárias e cartões de
crédito são a norma, esse pagamento parecia um anacronismo. A consulta só foi
marcada após a verificação da autenticidade das moedas, que, na verdade,
poderiam pagar por pelo menos cinquenta consultas. Decidi devolver pessoalmente
as moedas à paciente e orientá-la a fazer o pagamento de forma convencional.
O
que mais me intrigava nas moedas era a imagem de um barqueiro com capuz cunhada
nelas. Eu já havia visto essa imagem em algum lugar, mas não conseguia me
lembrar onde. As exigências para a consulta também eram peculiares: deveria ser
às 21 horas e não poderia haver espelhos no consultório.
Olhei para o relógio, que marcava 20h:59 min. Uma tempestade de pensamentos
invadiu minha mente: esquizofrenia? Surto psicótico? Mania? Transtorno
obsessivo-compulsivo?
Quando
o relógio marcou 21h, fui até a porta do consultório e a abri. Encontrei uma
mulher de cerca de 35 anos, vestida inteiramente de preto. Ela estava em pé a
alguns passos da porta, usando um chapéu preto com um véu da mesma cor que
cobria parcialmente seu rosto.
—
Senhora Lígia Rebouças, por favor, entre! — Disse, apontando para a poltrona em
frente à minha. Ela caminhou até a poltrona e sentou-se. O vestido preto
escondia seus pés, dando a impressão de que ela flutuava.
—
Dr. Luiz, meu tempo é curto, e estou aqui para lhe ajudar. Por isso, preciso
ser objetiva.
Confesso
que recuei diante da fala da paciente. Após anos estudando a mente humana, já
havia visto de tudo, mas essa experiência era uma novidade para mim.
—
Lígia, o paciente aqui não sou eu. Você pagou pela consulta, e, aliás, um valor
exorbitante e bem acima do que é de praxe no mercado. Vou lhe devolver suas
moedas e depois avaliamos a melhor forma de pagamento — disse, tirando as três
moedas de ouro do bolso do paletó.
Ela
olhou nos meus olhos e, mesmo por detrás do véu, pude perceber seus olhos
azuis, que se destacavam em um semblante de tristeza.
—
As moedas são suas. Você irá precisar delas e irá lembrar de minhas palavras:
essas moedas serão libertadoras.
—
Entendo, senhora Lígia, mas isso não é certo. Não posso ficar com as moedas —
disse, estendendo a mão para entregá-las.
Ela
segurou firme minha mão e a fechou com as moedas. Suas mãos eram gélidas,
talvez pelo efeito do ar condicionado no consultório.
—
Doutor, você precisa acreditar em minhas palavras. Você irá precisar dessas
moedas — respondeu, afastando as mãos. — O que me traz aqui são pesadelos
terríveis. Pagaria mil vezes a quantia em ouro para quem conseguir extinguir
estas imagens que constantemente aparecem em minhas noites de sono.
Senti-me
desconfortável com as moedas. Respirei fundo. Precisava manter o foco e
realizar o exame psíquico da minha paciente da melhor forma possível. Ela era
enigmática e, de alguma forma, havia me feito quebrar a rotina do meu
consultório fora do horário comum. Mas não era a primeira vez que ficava até
tarde atendendo pacientes com maior necessidade de acolhimento.
—
Me explique melhor sobre esses pesadelos — pedi, enquanto colocava as moedas
sobre a pequena mesa de apoio ao lado do meu bloco de notas.
Ela ficou cabisbaixa por algum tempo, em silêncio. Então ergueu a cabeça
novamente.
—
A todo momento, vejo a imagem de uma enfermeira me drogando e retirando de meu
colo um recém-nascido. Tento lutar contra o veneno e não consigo. Pouco depois,
me vejo morta, à busca de minha filha. E quando a encontro, ela já é uma linda
garota de 17 anos, mas não consigo tocá-la. E vejo a enfermeira com o rosto
inchado e olhos esbugalhados, morrendo. Nesse momento, sei que não sou capaz de
perdoá-la. Entendo que ela tenha cuidado da criança, mas minha alma dói e, se
ela quiser o perdão, terá que pagar o preço.
Antes
que eu pudesse fazer a próxima pergunta ou elaborar algum comentário, levei o
maior susto de minha vida ao ver essa mulher desaparecer bem diante de meus
olhos. Caí da poltrona e bati com a cabeça. Não sei por quanto tempo fiquei
desacordado.
Quando
recobrei a consciência, as três moedas de ouro ainda estavam lá. Guardei-as no
bolso e peguei um táxi para voltar para casa, lembrando de tudo que aquela
estranha mulher havia me dito.
Durante
o caminho, pesquisei sobre as três moedas e descobri que:
“Na
mitologia grega e romana, Caronte, o barqueiro do inferno, exigia que os mortos
portassem três moedas para atravessar o rio Aqueronte até o reino dos mortos:
duas moedas sobre os olhos e uma sob a língua. As moedas eram consideradas um
tributo ao deus Hades e eram geralmente óbolos, a moeda de menor valor. Se os
mortos não pagassem, suas almas permaneciam no Submundo, errantes pelas sombras
durante um século. As almas dos infelizes que não podiam pagar ficavam
condenadas a um vagar eterno entre o mundo dos vivos e dos mortos”.
Quando
cheguei em casa, diversas viaturas e sirenes estavam no local. Entrei
desesperado, mesmo com policiais tentando me segurar. Ao chegar na cozinha,
encontrei minha esposa morta, com os olhos esbugalhados e o rosto inchado,
exatamente como aquela mulher havia descrito. Minha filha de 17 anos se
aproximou e me abraçou em prantos.
—
Papai, mamãe morreu. Disseram que foi uma reação alérgica grave pela picada de
uma abelha.
Tudo
fazia sentido. Há três anos, havia queimado o resultado de um exame de DNA que
dizia que Melissa não era minha filha. Sempre pensei em traição e, em segredo,
perdoei minha esposa, preservando meu amor incondicional de pai por Melissa.
Nunca havia pensado em sequestro.
Sim,
lembrei de Caronte, o barqueiro. Coloquei a mão no bolso e já sabia o que fazer
com as três moedas de ouro. Seriam doadas para a igreja, no mesmo dia do
velório da minha esposa.
Sim,
em nome de minha “amada” esposa, resolvi desafiar o barqueiro do submundo,
negando-lhe o seu precioso tributo.
Hermes Marcondes Lourenço
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Que história impactante! Fiquei completamente imerso na atmosfera misteriosa criada pelo autor. A mistura entre o consultório psiquiátrico, as moedas de Caronte e a revelação final sobre a esposa me deixou arrepiado. Adorei como elementos sobrenaturais se entrelaçam com um drama humano profundo - traição, perdão e justiça.
ResponderExcluirA cena em que Lígia desaparece diante dos olhos do médico foi genuinamente assustadora, e o desfecho me pegou desprevenido. Fiquei especialmente tocado pela decisão do Dr. Luiz de negar o tributo a Caronte, transformando as moedas em um ato de desafio e libertação.
Parabéns ao autor pela narrativa envolvente que mistura tão bem mitologia grega com suspense psicológico. Essa história vai ficar na minha mente por muito tempo! 👏